domingo, maio 27, 2007

O pé descalço

Está deitado numa das pontas da Praça do Comércio. Dorme. Saio do eléctrico e dou de caras com o velho, de barbas longas e velhas, de matizes cinzas. Dorme, enrolado num casaco sujo, esburacado. Não quero olhar, sei que vou escrever sobre ele e não tenho o direito de o fazer. Tem um dos pés descalço, a pele é escura, aroxeada, os dedos maltratados, inchados, como que numa suave transição para a putrefacção. No outro pé, uma sapatilha moderna, embora já gasta do uso. Os turistas passam, de máquinas fotográficas apontadas ao arco da praça e aos eléctricos vermelhos, alegres, com o rio algures lá ao fundo. O velho dorme e eu penso que aquele é um bom sítio para morrer.

segunda-feira, maio 21, 2007

O lugar vazio

É gorda e está vestida de negro. Penso se o facto de ser cigana é relevante para a descrição. Concluo que é, de facto. Está sentada num banco do 15. O banco à sua frente está vazio. De cada vez que o eléctrico pára e entram pessoas, a mulher sugere, com simpatia (e uma ponta de desespero?):
- Senhor, sente-se aqui... Tem aqui um lugar...
Os acenos, os agradecimentos, as recusas, não obrigado...
Nova paragem, entram homens, entram mulheres, a todos a cigana apela:
- Tem aqui um lugar, olhe, sente-se aqui...
E ninguém se senta no lugar em frente. Ela sorri, triste, e olha pela janela.