domingo, janeiro 20, 2008

A rapariga dos jornais

Todas as manhãs passo por uma rapariga que sorri. Encontro-a sempre no mesmo semáforo, a distribuir jornais grátis, vestida com um impermeável amarelo, quase verde. Não consigo deixar de olhar para ela, porque sorri enquanto entrega cada jornal, desafiando as caras zangadas, dos que estão confortáveis dentro dos carros. É um sorriso ligeiro, mas não um cumprimento forçado, porque faz os olhos brilhar. A manhã fica perfeita, um sentimento que vai desaparecendo ao longo do dia, mas que renasce no seguinte. Na sexta-feira parei o carro perto do semáforo, ela aproximou-se, eu não aceitei o jornal, eu nunca aceito o jornal, mas devolvi um sorriso, agradeci, mais um começo de dia.

Uma música toca sem parar.

She says she's not worried of being alone
Her mind gives her more than her lover

sábado, dezembro 15, 2007

Três putas

São três, as putas. Velhas e putas. Conversam na esquina junto ao mini-mercado dos chineses. Paro na esquina, procuro um poste para prender a bicicleta. Preciso de comprar pão e qualquer coisa para jantar. O único poste é o da esquina. Chego ao pé duma das putas e peço: "Dá-me licença que prenda aqui a minha bicicleta?" Estou com três putas numa esquina e ouço-lhes as conversas enquanto tiro o cadeado da mochila. "Aquele lá à frente piscou-me o olho..." "Ele mora ali para os lados da Rua..." Olho as três mulheres de cabelos frisados e mal pintados, saia pelo joelho, casacos grandes e quentes, as rugas já a escorrer pela pele do rosto. Está tanto frio naquela esquina, penso, enquanto passo a porta do mini-mercado. Lá dentro, três homens de leste pagam três Super Bock ao chinês que controla a caixa. Pagam enquanto bebem. A noite está fria. Encaminho-me para a prateleira do vegetais e, enquanto escolho duas cebolas e uma courgette, os homens saem. Vão na direcção da esquina onde as três putas partilham o espaço com a minha bicicleta. Regresso e a esquina está vazia.

quarta-feira, setembro 26, 2007

O homem do soutien

Desço a Rua Garrett apressada (mas porque é que eu ando sempre apressada se ninguém me espera?...) e ouço um cântico. Procuro localizar quem canta e dou com a improbabilidade em pessoa. O homem atravessa a estrada, abandona os magros pertences no passeio, junto à esquina, e vai a cantar, olhando as pessoas. Tem uma saia ou uns calções largos, não consigo perceber, e a cobrir-lhe o peito um alvo soutien branco. Almofadado. Não canta mal, não senhor... Olho para trás mais uma vez e desço pelas escadinhas, por onde ecoa ainda a voz harmoniosa e tranquila. É por isto que gosto de Lisboa.

segunda-feira, setembro 10, 2007

Sem papas na língua

Sigo, de passo apressado, pelos cruzamentos de gente anónima de olhos ausentes. É tarde, muito tarde, estou atrasada, muito atrasada. Não olho para o relógio, pois deixei de usar tal acessório há cerca de três anos. Paro ao sinal vermelho, na passadeira passam carros e carros e mais carros. Finalmente posso avançar e um magote de pessoas cruza-se comigo sobre as riscas brancas. No meio deles, um homem cujo aspecto não me recordo - o segundo em que nos cruzámos foi demasiado rápido e o meu olhar ia absorto no horizonte lá mais à frente - grita a plenos pulmões para o ar: "Eu quero é putas!"
Sorrio.

sexta-feira, agosto 17, 2007

A senhora que falava alto

Começo a manhã como sempre, no metro, com música nos ouvidos. Uma mulher começa a falar mais alto, tentando segurar o olhar das pessoas. Arrisco e fico preso, com a sensação de que ela sabe que eu estou a ouvir. Largo a música para perceber, para ouvir falar de Deus e nos seus poderes. De repente tudo perde sentido, em referências a sexo e outras coisas menos sagradas. Mas a pose continua alegre e segura, no que já não convence ninguém, mas que é dito com convicção. Se não tivesse esquecido a música, ficando apenas a olhar, de certeza que acreditava nela. A estação chega e percebo que a senhora não está sozinha, uma filha qualquer envergonhada, que só se revela no último segundo, antes de um despedir em tom de conselho, misturado com desejos de boa sorte. Volto à música. Duvido que o dia traga melhor.

sexta-feira, junho 15, 2007

O abraço

Ele tem um aspecto relativamente... normal. Ela parece ter vindo directamente de Woodstock e, quando passam a correr por mim, os guizos que a rapariga leva pendurados no cabelo e nas pulseiras irritam-me. Entram no mesmo autocarro, no 14. Ela não deve ter mais de 16, 18 anos. Poderá ter mais, mas o sorriso, a vozinha de criança, a alegria do olhar fazem com que pareça ser muito nova. ele parece mais velho. Uns simples jeans e uma camisa discreta. Vão em pé no autocarro, como eu. Ela tem um vestido verde com pintas brancas até aos pés, com um peitilho e alsas cruzadas nas costas. O cabelo está entrançado e na orelha que consigo ver pendem meia dúzia de piercings, todos colocados no mesmo furo. Ela fala ao telemóvel com voz de menina pequena. Quando volto a olhar para os dois, vejo que estão a falar com os rostos muito próximos. Ela exibe um sorriso denunciador: está apaixonada. De repente abraçam-se. Durante uma eternidade. No meio da confusão de gente cinzenta que vai para o trabalho, o abraço forte e quente daqueles dois faz todo o sentido para mim. E penso que gostava de ter um vestido verde com bolinhas brancas.

domingo, maio 27, 2007

O pé descalço

Está deitado numa das pontas da Praça do Comércio. Dorme. Saio do eléctrico e dou de caras com o velho, de barbas longas e velhas, de matizes cinzas. Dorme, enrolado num casaco sujo, esburacado. Não quero olhar, sei que vou escrever sobre ele e não tenho o direito de o fazer. Tem um dos pés descalço, a pele é escura, aroxeada, os dedos maltratados, inchados, como que numa suave transição para a putrefacção. No outro pé, uma sapatilha moderna, embora já gasta do uso. Os turistas passam, de máquinas fotográficas apontadas ao arco da praça e aos eléctricos vermelhos, alegres, com o rio algures lá ao fundo. O velho dorme e eu penso que aquele é um bom sítio para morrer.

segunda-feira, maio 21, 2007

O lugar vazio

É gorda e está vestida de negro. Penso se o facto de ser cigana é relevante para a descrição. Concluo que é, de facto. Está sentada num banco do 15. O banco à sua frente está vazio. De cada vez que o eléctrico pára e entram pessoas, a mulher sugere, com simpatia (e uma ponta de desespero?):
- Senhor, sente-se aqui... Tem aqui um lugar...
Os acenos, os agradecimentos, as recusas, não obrigado...
Nova paragem, entram homens, entram mulheres, a todos a cigana apela:
- Tem aqui um lugar, olhe, sente-se aqui...
E ninguém se senta no lugar em frente. Ela sorri, triste, e olha pela janela.

terça-feira, abril 17, 2007

A boca vermelha

A velhinha viaja no 11. O meu encontro com ela é na Avenida da Liberdade e, nos poucos minutos que demoro a chegar à Praça do Comércio, é a boca que me chama a atenção. Uma boca pequenina, como uma gueisha que se esqueceu que já não o é. Uma boca de boneca de porcelana pintada à mão, perfeitamente desenhada e de um vermelho vivo de celebração. Tem a cara de rugas pálidas - o que torna o vermelho ainda mais arrebatador - enfeitada por dois brincos azul turquesa. Combinam com o tom dos olhos de céu. Segura a mala com um braço por cima do outro, delicados, com a serenidade de senhora fina que vai passear à Baixa num dia de Primavera.

conversa matrimonial

Corro para o 14, é mais rápido que o eléctrico. Não há lugar vagos, raramente há a esta hora. Seguro-me ao varão junto à porta e o rapaz está a falar alto. Sozinho.

"Casar? Era o que faltava! Para ela me dar pontapés? Para que é que eu quero uma mulher? Tá bem tá! Casar, pois sim. De pontapés já anda um gajo farto. Eu? Casar?..."

Tenho vontade de rir e por isso olho para o chão. Mais ninguém parece achar piada...