sábado, dezembro 15, 2007

Três putas

São três, as putas. Velhas e putas. Conversam na esquina junto ao mini-mercado dos chineses. Paro na esquina, procuro um poste para prender a bicicleta. Preciso de comprar pão e qualquer coisa para jantar. O único poste é o da esquina. Chego ao pé duma das putas e peço: "Dá-me licença que prenda aqui a minha bicicleta?" Estou com três putas numa esquina e ouço-lhes as conversas enquanto tiro o cadeado da mochila. "Aquele lá à frente piscou-me o olho..." "Ele mora ali para os lados da Rua..." Olho as três mulheres de cabelos frisados e mal pintados, saia pelo joelho, casacos grandes e quentes, as rugas já a escorrer pela pele do rosto. Está tanto frio naquela esquina, penso, enquanto passo a porta do mini-mercado. Lá dentro, três homens de leste pagam três Super Bock ao chinês que controla a caixa. Pagam enquanto bebem. A noite está fria. Encaminho-me para a prateleira do vegetais e, enquanto escolho duas cebolas e uma courgette, os homens saem. Vão na direcção da esquina onde as três putas partilham o espaço com a minha bicicleta. Regresso e a esquina está vazia.

quarta-feira, setembro 26, 2007

O homem do soutien

Desço a Rua Garrett apressada (mas porque é que eu ando sempre apressada se ninguém me espera?...) e ouço um cântico. Procuro localizar quem canta e dou com a improbabilidade em pessoa. O homem atravessa a estrada, abandona os magros pertences no passeio, junto à esquina, e vai a cantar, olhando as pessoas. Tem uma saia ou uns calções largos, não consigo perceber, e a cobrir-lhe o peito um alvo soutien branco. Almofadado. Não canta mal, não senhor... Olho para trás mais uma vez e desço pelas escadinhas, por onde ecoa ainda a voz harmoniosa e tranquila. É por isto que gosto de Lisboa.

segunda-feira, setembro 10, 2007

Sem papas na língua

Sigo, de passo apressado, pelos cruzamentos de gente anónima de olhos ausentes. É tarde, muito tarde, estou atrasada, muito atrasada. Não olho para o relógio, pois deixei de usar tal acessório há cerca de três anos. Paro ao sinal vermelho, na passadeira passam carros e carros e mais carros. Finalmente posso avançar e um magote de pessoas cruza-se comigo sobre as riscas brancas. No meio deles, um homem cujo aspecto não me recordo - o segundo em que nos cruzámos foi demasiado rápido e o meu olhar ia absorto no horizonte lá mais à frente - grita a plenos pulmões para o ar: "Eu quero é putas!"
Sorrio.

sexta-feira, agosto 17, 2007

A senhora que falava alto

Começo a manhã como sempre, no metro, com música nos ouvidos. Uma mulher começa a falar mais alto, tentando segurar o olhar das pessoas. Arrisco e fico preso, com a sensação de que ela sabe que eu estou a ouvir. Largo a música para perceber, para ouvir falar de Deus e nos seus poderes. De repente tudo perde sentido, em referências a sexo e outras coisas menos sagradas. Mas a pose continua alegre e segura, no que já não convence ninguém, mas que é dito com convicção. Se não tivesse esquecido a música, ficando apenas a olhar, de certeza que acreditava nela. A estação chega e percebo que a senhora não está sozinha, uma filha qualquer envergonhada, que só se revela no último segundo, antes de um despedir em tom de conselho, misturado com desejos de boa sorte. Volto à música. Duvido que o dia traga melhor.

sexta-feira, junho 15, 2007

O abraço

Ele tem um aspecto relativamente... normal. Ela parece ter vindo directamente de Woodstock e, quando passam a correr por mim, os guizos que a rapariga leva pendurados no cabelo e nas pulseiras irritam-me. Entram no mesmo autocarro, no 14. Ela não deve ter mais de 16, 18 anos. Poderá ter mais, mas o sorriso, a vozinha de criança, a alegria do olhar fazem com que pareça ser muito nova. ele parece mais velho. Uns simples jeans e uma camisa discreta. Vão em pé no autocarro, como eu. Ela tem um vestido verde com pintas brancas até aos pés, com um peitilho e alsas cruzadas nas costas. O cabelo está entrançado e na orelha que consigo ver pendem meia dúzia de piercings, todos colocados no mesmo furo. Ela fala ao telemóvel com voz de menina pequena. Quando volto a olhar para os dois, vejo que estão a falar com os rostos muito próximos. Ela exibe um sorriso denunciador: está apaixonada. De repente abraçam-se. Durante uma eternidade. No meio da confusão de gente cinzenta que vai para o trabalho, o abraço forte e quente daqueles dois faz todo o sentido para mim. E penso que gostava de ter um vestido verde com bolinhas brancas.

domingo, maio 27, 2007

O pé descalço

Está deitado numa das pontas da Praça do Comércio. Dorme. Saio do eléctrico e dou de caras com o velho, de barbas longas e velhas, de matizes cinzas. Dorme, enrolado num casaco sujo, esburacado. Não quero olhar, sei que vou escrever sobre ele e não tenho o direito de o fazer. Tem um dos pés descalço, a pele é escura, aroxeada, os dedos maltratados, inchados, como que numa suave transição para a putrefacção. No outro pé, uma sapatilha moderna, embora já gasta do uso. Os turistas passam, de máquinas fotográficas apontadas ao arco da praça e aos eléctricos vermelhos, alegres, com o rio algures lá ao fundo. O velho dorme e eu penso que aquele é um bom sítio para morrer.

segunda-feira, maio 21, 2007

O lugar vazio

É gorda e está vestida de negro. Penso se o facto de ser cigana é relevante para a descrição. Concluo que é, de facto. Está sentada num banco do 15. O banco à sua frente está vazio. De cada vez que o eléctrico pára e entram pessoas, a mulher sugere, com simpatia (e uma ponta de desespero?):
- Senhor, sente-se aqui... Tem aqui um lugar...
Os acenos, os agradecimentos, as recusas, não obrigado...
Nova paragem, entram homens, entram mulheres, a todos a cigana apela:
- Tem aqui um lugar, olhe, sente-se aqui...
E ninguém se senta no lugar em frente. Ela sorri, triste, e olha pela janela.

terça-feira, abril 17, 2007

A boca vermelha

A velhinha viaja no 11. O meu encontro com ela é na Avenida da Liberdade e, nos poucos minutos que demoro a chegar à Praça do Comércio, é a boca que me chama a atenção. Uma boca pequenina, como uma gueisha que se esqueceu que já não o é. Uma boca de boneca de porcelana pintada à mão, perfeitamente desenhada e de um vermelho vivo de celebração. Tem a cara de rugas pálidas - o que torna o vermelho ainda mais arrebatador - enfeitada por dois brincos azul turquesa. Combinam com o tom dos olhos de céu. Segura a mala com um braço por cima do outro, delicados, com a serenidade de senhora fina que vai passear à Baixa num dia de Primavera.

conversa matrimonial

Corro para o 14, é mais rápido que o eléctrico. Não há lugar vagos, raramente há a esta hora. Seguro-me ao varão junto à porta e o rapaz está a falar alto. Sozinho.

"Casar? Era o que faltava! Para ela me dar pontapés? Para que é que eu quero uma mulher? Tá bem tá! Casar, pois sim. De pontapés já anda um gajo farto. Eu? Casar?..."

Tenho vontade de rir e por isso olho para o chão. Mais ninguém parece achar piada...

quinta-feira, abril 12, 2007

A mão entalada

Estou à espera do 15, como habitualmente. O eléctrico chega, é um dos grandes, parece que vai cheio. Faço o gesto já mecânico de carregar no botão para abrir a porta. A porta não abre. Quando levanto o olhar descubro, horrorizada, uma mão. Um homem, do lado de dentro, tem a mão entalada na porta. Ainda que esteja acomodada entre duas borrachas, penso que aquilo deve estar a doer à brava. Dirijo-me, em sobressalto, para a porta ao lado. Entro e espero encontrar um ambiente de emergência, pessoas aflitas, alguém que ajude o homem a retirar a mão. Não encontro nada disso. Para meu espanto, os passageiro viajam tranquilos. Olho para o homem e vejo que viaja serenamente, em pé, junto à porta, com um cigarro por acender pendurado na boca. Parece estar estranhamente confortável, como se fosse um acto diário ir até ao Cais do Sodré com a mão entalada na porta.

terça-feira, abril 03, 2007

Rockabilly e Jessica Rabbit

Esperam os dois junto à linha amarela. Ele de blusão Top Gun, sapatos bicolores, cabelo em popa puxado para trás. Ela de saia de ganga apertada, cabelo esborratado, de forma estranha apanhado, pintado de mercurocromo. Tiro os auscultadores, para confirmar que não são estrangeiros e reparo num brilho esquisito, no meio dos incisivos do rapaz, um Piercing nos dentes, que deve brilhar como nos sorrisos dos filmes. Será que combinaram o estilo, ou tiveram apenas sorte?

sábado, março 31, 2007

A rapariga que lia Sabrinas

Espero pelo eléctrico. É de manhã, ainda não acordei, ainda não bebi café. Uma rapariga aproxima-se da paragem. É nova, talvez mais nova que eu, tem um casaco comprido com uma gola de pele estranhamente quente para o dia de sol que se pronuncia. Tem a pele muito branca cheia de sardas. Lê uma Sabrina. Também podia ser uma Bianca ou uma Júlia. Mas é uma Sabrina. Acho piada ao anacronismo...

sexta-feira, março 30, 2007

O homem que não fazia sentido

Chego-me para o lado com medo das pulgas, com medo que me pegue alguma “coisa má”. Na cabeça o capachinho mais ridículo que alguma vez vi na vida, um amontoado de cabelos castanhos brilhantes e gordurosos, na estreita linha entre o gel e o não lavar a cabeça. Por baixo um grisalho desorganizado, que imagino não ser cortado há meses. De volta aos cabelos castanhos continuo a estranhar a cor, como se roubados de alguma outra festa, feita de madeixas e flashes. O homem abre um jornal, escrito numa língua estranha, de letras viradas ao contrário. Vai directo a uma página, sem precisar de marcação, mas como quem continua um livro. Apesar de não conseguir ler, percebo que é um anúncio. Quem é que lê um anúncio aos bocados?
Não aguento e levanto-me, antes do metro chegar à minha estação, fico em pé especado e descubro fios pretos, sem saber se não estão presos à própria cabeça. Na cara um risco castanho, uma linha no meio da barba, que desafia o desalinho dos pelos. As unhas estão sujas e eu desisto de tentar perceber.

segunda-feira, março 26, 2007

O coleccionador de beatas

Passou à minha frente. Parou e voltou para trás. Baixou-se para apanhar uma beata. Apanhou a primeira, depois mais uma e outra, ali uma quarta, uma quinta, e já vai com uma mão cheia. Deu a volta e descobriu mais umas quantas entaladas entre os paralelos. Não sei o que lhe fará pior à saúde: se fumar, se pôr na boca a beata alheia...

quarta-feira, março 21, 2007

Respeitáveis senhoras

Duas mulheres, imagino que irmãs, estão sentadas na paragem do 15. Têm talvez 65/70 anos. Ambas são relativamente gordas. A que está mais perto de mim tem o cabelo tão armado que me pergunto se será laca ou uma peruca. A cara está demasiado luzidia, penso que tenha passado algum creme ou talvez seja suor. A segunda mulher tem a cara também luzidia. No caso dela deve ser calor, porque está vestida com um casaco grosso. Ambas me parecem “enchouriçadas”, sem espaço para respirar através das roupas. Vem-me à cabeça um misto de velhos dos marretas com Tweedle Dee e Tweedle Dum.

terça-feira, março 20, 2007

Mãe e Filha

Há uns anos, quando andava de autocarro, costumava ver uma senhora que parecia a minha mãe. Não era exactamente igual, mas certas partes do rosto eram tão parecidas que quase podia imaginar se ela seria uma tia esquecida. Hoje, no metro, vi uma senhora que parecia a minha avó, a mãe da minha mãe. Mais uma vez havia diferenças, mas tanto em comum, que me apeteceu abraçá-la, percebo-o agora.
Só que na mão esquerda todo um mundo diferente, dedos vazios, onde a minha avó tem anéis duas vezes, por carregar os que não conseguiu largar. Devia tê-la abraçado...

O acrobata

É quase meia-noite. Um homem magro, de raça negra, cerca de 30/35 anos, anda pelo autocarro 45. Balbucia frases, mas não se percebe o que diz. Acena pelas janelas, dirige-se aos passageiros de uma ponta à outra do autocarro. No meio do corredor, segura-se em duas pegas, uma de cada lado, e levanta as pernas do chão, tenta fazer algo parecido com uma cambalhota. O revisor, que vai junto do condutor, adverte-o: “Isto não é nenhum circo para estares a fazer acrobacias!”. Tenho uma vontade incontrolável de rir e viro-me discretamente para a janela. Apetece-lhe brincar, por isso, brinca. O homem dirige-se à retaguarda do autocarro e mete conversa com os passageiros. Chega a mexer na cabeça de um rapaz que vai a ouvir música, que o afasta, com ar de poucos amigos. O homem começa então a brincar com o martelo que serve para quebrar o vidro em caso de emergência, puxa o fio e segura-o com os dentes. Nesta fase começo a ficar preocupada com o que se seguirá. Mas ele levanta-se, dá mais umas voltas pelo autocarro. Diz qualquer coisa como “vou cair”. Mas não cai. Vai-se metendo com algumas pessoas. Uma rapariga muda de lugar. O homem sai nos Restauradores. Reparo, antes de ele sair, que tem a braguilha aberta.

segunda-feira, março 19, 2007

Guloseima

Autocarro 59. O puto vai ao colo do avô, com o nariz escarrapachado no vidro. Tem um boné azul na cabeça com o desenho do rato Mickey e um chupa-chupa vermelho e branco na mão. Segura o chupa-chupa como se fosse a coisa mais valiosa do mundo. E talvez seja mesmo.

domingo, março 18, 2007

Mad Max a lanchar

Admiro os góticos, mesmo quando puxam dos telemóveis, e desfazem horas de compor uma personagem. Dou com um ao meu lado no metro, na verdade um gótico híbrido, porque recordo mais tons de cinzento do que de negro. Não me lembro do resto, fixado que fiquei no seu leitor de cd’s, um anti I-Pod enferrujado. Imagino se aquilo foi feito de propósito, ou o único bem que salvou de uma casa em chamas. Lembro-me dos filmes do Mad Max, onde o futuro é sempre mostrado em objectos envelhecidos. O meu pensamento é interrompido, pelas unhas a desembaraçarem o fio dos auscultadores, unhas quase negras, mais umas vez indecisas, entre o sujo e o pintado, que me deixa na dúvida. A sandes retirada do plástico, de queijo derretido e alface (surpreendentemente) verde, lembra-me as viagens de comboio, e o pão que não me atrevia a tirar das máquinas. Deve ir para longe, pela forma calma como mastiga...

As “bifas”

Zangado comigo próprio pela falta de originalidade, não consigo deixar de as chamar (em silêncio) de “bifas”, e olho pasmado. A mais nova (uma criança ainda), prometendo vir a ser uma qualquer miss ao serviço de sua majestade, a mais velha parecendo sair das ruas sujas de Charles Dickens, as únicas (as velhas dessas ruas) que conseguem fazer aqueles sorrisos de bochechas redondas e rosadas. Imagino se a mais nova será igual quando crescer, depois de ter passado a faixa a outra...

Os sapatos brilhantes

A melhor maneira de os explicar, de dizer como eram, é falar na luva do Michael Jackson, aquela branca toda brilhante. Agora imaginem-na púrpura e em forma de sabrinas rasas, das que não fazem doer os pés. Uns sapatos assim ofuscam quem os usa, é impossível olhar mais acima do que os tornozelos. Nunca cheguei a saber como era a rapariga.

O aceitar da declaração de intenções

Tardio por ter andado distraído, de olhos no chão durante uns dias, mas a tempo de apanhar o metro, e observar... numa partilha de quem cresceu longe da cidade.

terça-feira, março 13, 2007

O vagabundo e o gótico

Na paragem do 15 está um homem a pentear a barba com um pente verde. Tem uma mochila, um boné na cabeça e a roupa está suja. Não sei se cheira mal, pois não me aproximo o suficiente. Entra no eléctrico antes de mim e perco-o de vista porque vai para a outra ponta.

À minha frente está sentado um rapaz vestido de preto, com um blusão de cabedal e crachás com caveiras e outros desenhos. Tem óculos de massa pretos e uma pulseira de bicos no pulso direito. Os headphones tocam “and now you do what they told ya”, dos Rage Against The Machine. Ele repete a letra.

A velhinha-postal antigo

É domingo. Sentada no 45 vai uma velhinha de aspecto frágil. Tem as mesmas cores de um postal antigo. Tem uma gabardina verde-água, uma camisola rosa e uma bóina à pintor da mesma cor. Usa umas calças azuis com riscas finas brancas e uns sapatos grená de atacadores com meias de cor parecida. Numa das mãos segura um pequeno chapéu de chuva vermelho com riscas brancas, ainda a pingar da chuva. Na outra mão leva um ramo com cinco rosas cor-de-laranja. A velhinha tem uma cara pequena, muito enrugada, olhos encovados e madeixas de cabelo branco a sair pela bóina. Vai muito direita, com o ramo de rosas na mão, e de vez em quando fecha os olhos, embalada pelos solavancos do autocarro.

Síndroma de Tourette?

Entra um homem de meia idade no autocarro 36. Está bem vestido, aspecto sóbrio. Passaria despercebido se não começasse a mandar o motorista para o caralho e a dizer uma série de coisas que não percebo. Está descontrolado, cospe as palavras enquanto se senta e levanta do lugar repetidamente. Não percebo o que diz, pois fala de forma rápida e enrola algumas palavras. Com uma voz roufenha manda o motorista para o caralho várias vezes seguidas. Chegamos ao Saldanha e o homem sai tranquilamente.

Declaração de intenções

No autocarro, no eléctrico, no metro, nas esquinas e ruas de Lisboa, vagueiam rostos e corpos que poderiam contar histórias. Às vezes contam. Mas outras vezes ficam arquivados nos meandros da memória ou nas páginas de um bloco de notas. Observar pessoas é, com o passar do tempo, algo tão natural como respirar. E coleccioná-las pode tornar-se um vício.